Alguns projetos de software livre têm a figura do “ditador benevolente vitalício”: seu criador assume esse título e age de ofício e tem a última palavra na tomada de decisões.
Em alguns casos, funciona. Vide o de Linus Torvalds, criador do Linux que, até hoje, escreve código, revisa contribuições e anuncia as novas versões do kernel em uma lista de e-mail.
Já em outros…
Matt Mullenweg, co-criador e líder do WordPress, um dos três conselheiros da Fundação WordPress e fundador e CEO da Automattic, enlouqueceu.
Os eventos ainda estão se desenrolando e a história é repleta de pormenores, por isso farei um breve histórico com links (em inglês), caso você queira se aprofundar.
Na sessão de perguntas e respostas após seu discurso de encerramento do WordCamp EUA, sexta passada (20), Matt fez um ataque duro e inesperado à WP Engine, uma das maiores hospedagens gerenciadas1 de WordPress, conclamando os clientes a encerrarem seus contratos, ou seja, a boicotá-la.
A WP Engine era patrocinadora do evento e tem sua parcela de contribuições ao ecossistema, com tecnologias, plugins e outros softwares desenvolvidos e compartilhados com o mundo. É propriedade da Silver Lake, uma firma de private equity estadunidense.
Matt acusou a WP Engine de não contribuir com horas de trabalho para o projeto WordPress, do uso indevido da marca “WordPress”, o que estaria confundindo as pessoas, e de a WP Engine alterar a experiência do WordPress com algumas alterações no código padrão.
Em um post subsequente no WordPress.org em que chamou a WP Engine de “câncer”, Matt deu como exemplo de descaracterização do WordPress a remoção das revisões de posts — uma alteração mínima, oficial e documentada.
Esse post caiu mal na comunidade. Embora lidere o WordPress.org — o projeto de software livre (FOSS) —, Matt é, ao mesmo tempo, dono e CEO da Automattic, uma rival direta da WP Engine. Mesmo que suas acusações tivessem fundamento, ele representa um flagrante conflito de interesses e, portanto, não deveria ser o mensageiro ou, se sim, deveria disparar do site da sua empresa, não do projeto FOSS.
A WP Engine reagiu enviando uma notificação extrajudicial à Automattic e a Matt. Nela, ficamos sabendo — com prints de mensagens como prova — o real intuito da investida de Matt: dinheiro.
O executivo exigiu, até momentos antes de subir ao palco do WordCamp EUA, que a WP Engine pagasse um percentual do seu faturamento à Automattic pelo licenciamento da marca ou então iria “declarar guerra”. Posteriormente, o próprio Matt escreveu, no Reddit, que exige 8% do faturamento da WP Engine. Há estimativas circulando por aí de que o percentual representa US$ 32 milhões por ano.
Esse expediente tem nome. Chama-se “extorsão”.
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A WP Engine, como dito, é da Silver Lake, uma firma de private equity com US$ 102 bilhões em ativos sob custódia. Esse fato é lembrado por Matt o tempo todo como suposta prova das más intenções da empresa de hospedagem2.
O que é estranho, considerando que:
A Silver Lake está no negócio há muitos anos; por que só agora tornou-se um incômodo?
O próprio Matt investiu em algumas rodadas na WP Engine desde o início da empresa e, em janeiro, participou de um evento deles onde disse: “[…] quando você apoia empresas como uma WP Engine, que não apenas fornecem um serviço comercial, mas também fazem parte de uma comunidade de código aberto mais ampla, você está dizendo, ei, eu quero mais disso no mundo.” Se a queda de braço ocorre há quase dois anos, como ele alega, por que ele se sujeitou a elogiar a rival?
A BlackRock, outra firma do tipo e que atua em outra escala de magnitude (US$ 10 trilhões), tem uma fatia da Automattic.
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A discussão evoluiu (ou regrediu) e, agora, está focada na suposta infração de direitos da marca WordPress pela WP Engine.
O que é, no mínimo, estranho.
No site da Fundação WordPress há uma página com a política de direitos de marca. O trecho que nos importa é este:
Todas as outras empresas [com fins lucrativos] ou projetos relacionados ao WordPress podem usar o nome e o logo do WordPress para se referir e explicar seus serviços, mas não podem usá-los como parte de um nome de produto, projeto, serviço, domínio ou empresa, e não podem usá-los de nenhuma maneira que sugira uma afiliação ou endosso pela Fundação WordPress ou pelo projeto de código aberto do WordPress.
Mais abaixo, a versão pré-cérebro derretido do Matt seguia (você pode lê-la na Wayback Machine):
A abreviação “WP” não é coberta pelas marcas registradas do WordPress e você é livre para usá-la da maneira que achar melhor.
Em caso de dúvida sobre o uso do nome ou logo do WordPress ou WordCamp, entre em contato com a Fundação para esclarecimentos.
Ela mudou — ou melhor, Matt a mudou:
A abreviação “WP” não é coberta pelas marcas registradas do WordPress, mas, por favor, não a use de uma maneira que confunda as pessoas. Por exemplo, muitas pessoas pensam que a WP Engine é “WordPress Engine” e oficialmente associado ao WordPress, o que não é. Eles nunca doaram para a Fundação WordPress, apesar de ganhar bilhões de receita em cima do WordPress.
Se você quiser usar a marca registrada do WordPress comercialmente, entre em contato com a Automattic, eles têm a licença exclusiva. O único sublicenciado deles é a Newfold.
Para uso não comercial, você pode entrar em contato conosco aqui na Fundação.
Muito conveniente.
Na noite de quarta (25), um novo post de Matt no site do WordPress.org (o projeto FOSS, não comercial) anunciou uma escalada no conflito. Unilateralmente, ele bloqueou o acesso da WP Engine a todos os recursos providos pela Fundação, o que inclui atualizações de plugins, temas, correções de segurança e ferramentas de colaboração. Também expulsou dos canais de comunicação do projeto todas as pessoas com e-mails terminados em @wpengine.com.
A WP Engine hospeda mais de 1 milhão de sites. São blogs pessoais, lojas de pequenas, médias e grandes empresas, sites de clientes de agências. Muita gente está à deriva, com o futuro de sites de que dependem para ganhar a vida, pela ganância de um homem.
Esse último movimento marcou uma virada de chave na opinião pública. Em espaços de debate, como no r/WordPress do Reddit, onde antes havia algum equilíbrio nos comentários, agora a maioria parece crítica à investida insana de Matt.
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O que está em jogo aqui é a alma e o futuro do WordPress, o software de gerenciamento de conteúdo mais popular do mundo. Algumas estimativas colocam-no como o “motor” de 43% dos sites ativos.
A ameaça de Matt não é nova, mas atingiu novo patamar. Desde a criação da Automattic e do WordPress.com até o controle legal das partes fundamentais do projeto, o WordPress, embora seja um projeto de software livre com uma licença aberta/permissiva (GPLv2), acaba que é, no fundo, propriedade do Matt.
É essa posição que, ao que parece, dá a ele a confiança para agir de modo tão arrogante e irresponsável.
Mesmo a postura valentona, de demandar dinheiro de participantes de destaque do ecossistema em público, em clima de baixaria, não é nova. Em 2022, Matt chamou a GoDaddy de “empresa parasita” e uma “ameaça ao futuro do WordPress”. A empresa deve ter cedido, porque desde então voltou a patrocinar eventos do WordPress.
Admirador de figuras como Elon Musk, nos últimos meses Matt parece mais descontrolado que de costume.
Em fevereiro, por exemplo, durante um sabático de três meses, Matt baniu uma pessoa do Tumblr, plataforma de propriedade da Automattic, por uma suposta (e ridícula) “ameaça de morte”3, engajou numa longa discussão com usuários que o criticaram e, no meio dessa salada toda, “tirou do armário” a pessoa, que é trans.
Agora, entre um ataque gratuito à WP Engine e outro, ele postou4 suas “contribuições de caridade”, as doações (dedutíveis do imposto de renda, claro) que fez nos últimos 12 anos, como se estivesse numa competição de quem tem o maior pênis beneficente.
Se Lee Wittlinger, que controla os investimentos da Silver Lake no ecossistema WordPress, ou Heather Brunner, CEO da WP Engine, quiserem publicar suas contribuições de caridade nos últimos 12 anos, eles são bem-vindos a fazê-lo.
O que isso tem a ver com o assunto é uma excelente pergunta — e não sei a resposta, nem se existe uma.
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Desde o primeiro post no WordPress.org, advogo pela renúncia ou deposição de Matt como líder do WordPress, do projeto FOSS. O que provavelmente não acontecerá, visto que ele detém todo o poder ali dentro.
Ao instrumentalizar o projeto FOSS para atacar um concorrente direto da sua empresa com fins lucrativos, a Automattic, Matt perdeu o meu respeito e o de muitos que usam, gostam e/ou dependem do WordPress.
“Ditador benevolente” é uma contradição em termos. Linus Torvalds é a exceção que confirma a regra — e ele ainda está vivo e atuante, o que lhe confere o risco de pisar na bola no futuro.
A frustração com Matt Mullenweg é ainda maior porque, à luz dessa investida truculenta contra um participante do ecossistema, o verniz fino de “software livre” que cobria o WordPress e fez dele a maior plataforma de publicação de conteúdo da web, descasca, escorre.
Em termos práticos, usar o WordPress tornou-se um risco. Qualquer empresa, agência ou empreendimento construído em cima desse software que ousar ser bem sucedido virará um alvo em potencial do método mafioso de Matt fazer dinheiro. A WP Engine parece ser a primeira empresa a se opor a esse modus operandi e, nessa, a expô-lo.
Em julho, a Fundação WordPress pediu o registro, nos Estados Unidos, dos termos “hospedagem WordPress” e “WordPress gerenciado”, sinal de que a artilharia contra a WP Engine não é um equívoco, mas sim parte de uma estratégia.
É provável que nada aconteça, porém. Pelo menos até a disputa ser decidida na Justiça estadunidense, onde deve chegar em breve.
Transparência #1 Matt leu meu texto em inglês, publicado no sábado (21). Enviou-me um e-mail sucinto, perguntando: “Se eu sair, quem você propõe que me substitua?” Respondi com educação e a conversa se encerrou ali. Meu texto circulou no Slack interno da Automattic, postado pelo próprio Matt.
Transparência #2 O Manual do Usuário está hospedado na Automattic em um contrato que só terminará no início de 2026 🫠
Uma hospedagem gerenciada fornece a instalação e manutenção de sites feitos com WordPress. ↩
Firmas de private equity (PE) são nefastas, mas isso não importa aqui. Se o capeta quiser usar o WordPress e lucrar em cima dele, pode — a GPLv2 é explícita nesse sentido. Para saber mais sobre o mal das firmas de PE, recomendo este podcast (em inglês). ↩
“[Tomara que o CEO do Tumblr] morra uma morte eternamente dolorosa envolvendo um carro coberto de martelos que exploda mais do que algumas vezes e os martelos voem por toda parte.” ↩
Pessoal, não no do WordPres.org. Pelo menos isso. ↩