Foi então que me vi numa gare extremamente vazia. Tão vazia que nem a minha sombra se refletia nela. Alguém, uma voz, me sussurrou ao ouvido: Cafarnaum.
Quando o trem desapareceu sob o túnel, senti de súbito que estava perdido: chamei-me pelo nome para sentir minha presença, em vão busquei o último cigarro sob o paletó: os trilhos, apenas os trilhos por todos os lados. Não era noite nem era dia, as lâmpadas não sabia se estavam acesas ou estavam apagadas, um portão luzia ao fundo e todas as setas se dirigiam para ele. Sentia-me tão lúcido que nem um instante me ocorreu a hipótese de estar sonhando, dormindo, ou mesmo morto: agora as minhas pernas me levavam contra a minha vontade, eu estava a cavalo sobre mim mesmo, era um centauro e o meu nome já não formava qualquer sentido: mesmo se houvesse uma parede em frente eu a transporia sem dificuldade. Cafarnaum – dizia a tabuleta em vermelho, de repente em azul.
E então veio a praça a perder de vista, nem uma árvore, nem um poste: apenas as casas ao redor, mudas, surdas, todas iguais como refletidas num jogo de espelhos – e o céu vazio por cima. Pus-me a trotar pela praça, garbosamente como se me olhassem milhões de olhos, eu era positivamente um animal de circo: aplausos unânimes ressoaram das pedras do chão e das esquinas, meus cascos batiam palmas e o eco lhes respondia de cada interstício: toda uma multidão ululante: E se fossem lobos? De medo estaquei a um canto, as narinas no ar, o rabo tenso. Um frio glacial vestia o enorme silêncio, antes eu não sentira o frio nem o calor, simplesmente não sentia: puxei a aba do paletó, de novo era eu dentro de mim, os olhos me vendo como dentro de uma vitrina.
Campos de Carvalho é muito difícil de descrever, então foi o início do livro para vocês terem uma ideia. Todos seus quatro livros se lê em uma sentada. A obra reunida dele tem menos de 400 páginas. E cada uma delas é um deleite, tipo esse início d'A Chuva Imóvel aí.
Ainda dá tempo de mais uma indicação para a Quarta Capa?
Afromarxismo, Fragmentos de uma teoria literária prática é provavelmente a melhor coisa que li sobre literatura nos últimos anos, então vai lá e dá uma chance para o livro.
#QuartaCapa
E, para fechar com chave de ouro, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas.
O livro é bem gostoso de ler, nada faz sentido e por isso mesmo não poderia ser mais divertido.
Um exercício bom para nós, crescidos, é ler lembrando de como cada pedaço foi adaptado e apropriado de diferentes formas nas mais diferentes mídias, porque Alice se autonomizou e faz parte do inconsciente coletivo hoje em dia.
#QuartaCapa